Ao celebrarmos a memória de Santo Tomás de Aquino, e desejo reporto-me às palavras que o santo doutor, tomando-as emprestadas de Santo Hilário, escreveu logo no início de uma de suas mais importantes obras, a Summa contra gentes, e que bem representam a profunda espiritualidade do Aquinate e a vida mística que envolvia sua alma. Sim, São Tomás, além de filósofo e teólogo, homem das especulações profundas e áridas, era também um santo e um místico, homem da união com Deus. São estas as palavras:“Ego hoc vel praecipuum vitae meae officium debere me Deo conscius sum, ut eum omnis sermo meus et sensus loquatur”, isto é, “Estou consciente de que o principal ofício de minha vida está relacionado a Deus, a quem me sinto obrigado, de modo que toda palavra minha e todos os meus sentimentos dele falem”.
A vida mística, irmãos e irmãs, não deve ser vista como um luxo espiritual reservado a poucos cristãos; ao contrário, deve ser considerada como o termo natural de uma vida batismal fundamentalmente orientada pelas virtudes sobrenaturais da fé, esperança e caridade. São Tomás nunca fala de si mesmo ou de sua vida pessoal em seus escritos, que são abundantes. Mas, com a citação acima, deixou transbordar, como que não podendo impedi-lo, algo da rica torrente que irrigava o profundo de sua alma. São Tomás, com efeito, não só como estudioso e profundo conhecedor da condição humana, mas também por experiência própria, tinha a clara consciência de que o homem não pode ser autenticamente homem se prescinde de Deus, a fonte de seu ser, de sua vida.
O apelo à vida mística, fim da existência cristã, encontra hoje muitos desafios. Desde os fins da Idade Média, passando pelo Renascimento, a Revolução Científica, o Iluminismo, a Revolução Industrial, as ideologias de esquerda e de direita, até a vida contemporânea, assinalada pelo relativismo, consumismo e hedonismo, a cultura da nossa civilização ocidental tem se secularizado cada vez mais, e a fé em Deus, em muitas partes, comporta-se como uma chama que corre o risco de apagar-se por não encontrar mais alimento. A secularização da cultura é o movimento de volta para o mundo e para os valores do mundo. Existe um sentido positivo do termo secularização: aquele que reconhece a relativa autonomia das realidades temporais. Mas se se quer afirmar uma autonomia absoluta do mundo, que o desligue definitiva e irrevogavelmente de Deus, seu Criador, então caímos no secularismo, o modo negativo de entender o movimento de volta para o mundo. O mundo e o homem, meus irmãos e irmãs, se gozam de uma autonomia, esta só pode ser relativa, jamais absoluta. Em última análise, a novidade do mundo não está no mundo, mas fora dele, como ensina Santo Tomás. O mundo e o homem são realidades contingentes, cujo ser é recebido d’Aquele que é o próprio Ser subsistente – Ipsum Esse Subsistens.
A vida e os escritos do Aquinate, que a Igreja proclamou seu doutor comum – Doctor Communis Ecclesiae -, tem muito a nos ensinar hoje. Se almejamos um autêntico humanismo, não podemos deixar Deus de lado. Há quem diga que quem vive da fé, vive de forma alienada, e distancia-se da realidade. Mas a esses devemos perguntar: que é a realidade? É apenas o mundo material? São apenas as realidades temporais? Não. A realidade que vemos com os olhos da carne não é tudo nem é o mais fundamental. Em virtude do dinamismo de nosso espírito, podemos reconhecer uma realidade transcendente ao mundo e ao próprio homem, realidade fundamental, que é a causa primeira da realidade mundano-humana. Aquele, pois, que encaminha sua vida a Deus não vive fora da realidade; ao contrário, edifica sua vida sobre o fundamento inconcusso da "realidade mais real", a Realidade primeira.
As sórdidas conseqüências da negação de Deus são bem conhecidas: falta de sentido para a vida; relativismo gnosiológico e também moral; disponibilidade da vida humana, pois que o homem passa a ser visto apenas como um ser mundano, considerado fruto do acaso ou das leis cegas da natureza; deficiência metafísica, pois que não se chega à explicação última do ser, contentando-se com as explicações científicas, que apenas dizem “como” as coisas se comportam, não podendo jamais ensaiar uma resposta para a questão das questões, segundo a formulação de Leibniz, vulgarizada por Heidegger: “Por que existe o ente ao invés do nada?”; enfim, sem Deus, o homem e a civilização perdem luz e alimento.
A missão precípua da Igreja nos tempos atuais - e porque não dizer: em todos os tempos? – é, como recentemente recordou Sua Santidade o Papa Bento XVI, abrir aos homens acesso a Deus. Não a qualquer Deus, mas ao Deus que fala por seu Unigênito, Jesus Cristo, de cuja mensagem a Igreja é, por disposição divina, depositária e pregoeira. Devemos encaminhar-nos ao Deus que se deixa encontrar, de maneira singular, nas ações litúrgicas da Igreja. Na belíssima homilia da noite de Natal de 2009, Bento XVI disse: “A liturgia é a primeira prioridade. Todo o resto vem depois”. E convidou a “colocar em segundo plano outras ocupações, por mais importantes que sejam, para nos encaminhar para Deus, para deixar que Ele entre em nossa vida e em nosso tempo”. Aliás, creio que a grande chave interpretativa do pontificado de Bento XVI seja a “primazia de Deus”, primazia que se deve manifestar na ações sagradas da liturgia e também em nossa vida pelo testemunho da fé, da esperança e da caridade.
Deixemos que o Doutor Angélico, neste dia em que celebramos sua memória, inspire-nos atitudes e palavras a fim de que Deus seja de fato a prioridade da nossa vida. Os escritos de São Tomás, sua experiência pessoal e, de modo especial, sua intercessão alcancem-nos a graça de sermos, neste mundo secularizado de hoje, testemunhas de que o homem é de Deus e para Deus, o Princípio e o Fim de todas as coisas.