Eu me experimento inacabado. Da obra, o rascunho. Do gesto, o que não termina. Sou como o rio em processo de vir a ser. A confluência de outras águas e o encontro com filhos de outras nascentes o tornam outro. O rio é a mistura de pequenos encontros. Eu sou feito de águas, muitas águas. Também recebo afluentes e com eles me transformo.
O que sai de mim cada vez que amo? O que em mim acontece quando deparo com a dor que não é minha, mas que pela força do olhar que me fita vem morar em mim? Eu me transformo em outros? Eu vivo para saber. O que do outro recebo leva tempo para ser decifrado. O que sei é que a vida me afeta com seu poder de vivência. Empurra-me para reações inusitadas, tão cheias de sentidos ocultos. Cultivo em mim o acúmulo de muitos mundos.
Por vezes o cansaço me faz querer parar. Sensação de que já vivi mais do que meu coração suporta. Os encontros são muitos; as pessoas também. As chegadas e partidas se misturam e confundem o coração. É nessa hora em que me pego alimentando sonhos de cotidianos estreitos, previsíveis.
Mas quando me enxergo na perspectiva de selar o passaporte e cancelar as saídas, eis que me aproximo de uma tristeza infértil. Melhor mesmo é continuar na esperança de confluências futuras. Viver para sorver os novos rios que virão. Eu sou inacabado. Preciso continuar.
Se a mim for concedido o direito de pausas repositoras, então já anuncio que eu continuo na vida. A trama de minha criatividade depende deste contraste, deste inacabado que há em mim.
Um dia sou multidão; no outro sou solidão. Não quero ser multidão todo dia. Num dia experimento o frescor da amizade; no outro a febre que me faz querer ser só. Eu sou assim. Sem culpas.
Quem sou eu? Eu, visto pelo outro, nem sempre sou eu mesmo... Quem sou eu? Eu vivo para saber. Interessante descoberta que passa o tempo todo pela experiência de ser e estar no mundo. Eu sou e me descubro ainda mais no que faço. Faço e me descubro ainda mais no que sou. Partes que se complementam.
O interessante é que a matriz de tudo é o "ser". É nele que a vida brota como fonte original. O ser confuso, precário, esboço imperfeito de uma perfeição querida, desejada, amada.
De vez em quando, eu me vejo no que os outros dizem e acham sobre mim. Uma manchete de jornal, um comentário na internet ou até mesmo um e-mail que chega com o poder de confidenciar impressões. É interessante. Tudo é mecanismo de descoberta. Para afirmar o que sou, mas também para confirmar o que não sou.
Há coisas que leio sobre mim que iluminam ainda mais as minhas opções, sobretudo quando dizem o absolutamente contrário do que sei sobre mim mesmo. Reduções simplistas, frases apressadas que são próprias dos dias em que vivemos.
O mundo e suas complexidades. As pessoas e suas necessidades de notícias, fatos novos, pessoas que se prestam a ocupar os espaços vazios, metáforas de almas que não buscam transcendências, mas que se aprisionam na imanência tortuosa do cotidiano. Tudo é vida a nos provocar reações.
Eu reajo. Fico feliz com o carinho que recebo, vozes ocultas que não publico, e faço das afrontas um ponto de recomeço. É neste equilíbrio que vou desvelando o que sou e o que ainda devo ser, pela força do aprimoramento.
Eu, visto pelo outro, nem sempre sou eu mesmo. Ou porque sou projetado melhor do que sou ou porque projetado pior. Não quero nenhum dos dois. Eu sei quem eu sou. Os outros me imaginam. Inevitável destino de ser humano, de estabelecer vínculos, cruzar olhares, estender as mãos, encurtar distâncias.
Somos vítimas, mas também vitimamos. Não estamos fora dos preconceitos do mundo. Costumamos habitar a indesejada guarita de onde vigiamos a vida. Protegidos, lançamos nossos olhos curiosos sobre os que se aproximam, sobre os que se destacam, e instintivamente preparamos reações, opiniões. O desafio é não apontar as armas, mas permitir que a aproximação nos permita uma visão aprimorada. No aparente inimigo pode estar um amigo em potencial. Regra simples, mas aprendizado duro.
Mas ninguém nos prometeu que seria fácil. Quem quiser fazer diferença na história da humanidade terá que ser purificado nesse processo. Sigamos juntos. Mesmo que não nos conheçamos. Sigamos, mas sem imaginar muito o que o outro é. A realidade ainda é base sólida do ser.
Eu tomo posse daquilo que sou. Quem não se ama não sabe amar ninguém. Ser pessoa é, antes de tudo, ter consciência: "Eu sei quem sou eu. Tenho diante de mim minhas dificuldades, mas eu me aceito!" Conversão é tomar posse daquilo que se é. Por isso, Deus não pode trabalhar com uma pessoa mascarada, que não se aceita.
Não existe cristão se ele não se aceitar do jeito que é. Você é o que é, e a sua conversão passará por aquilo que você é!
Jesus quando viu Maria Madalena fez com que ela voltasse a ver aquilo que ela era, não uma prostituta, mas uma filha de Deus projetada por Ele; não aquilo que a sociedade criou.
Nós caímos muito nos artifícios que nos são apresentados. Nossa vida se ilumina por novidades e gostamos muito do estético. E seguimos aquilo que é diferença, não somos fãs da disciplina. Corremos atrás de coisas e duas semanas depois vemos que realmente aquilo não era tão bom como parecia.
Por que os artistas não permanecem muito tempo casados? É por causa disso. Querem respostas rápidas, românticas, buscam o brilho eterno e acabam desanimando. Então, o outro começa a decidir por nós e ficamos perdidos. Muitas pessoas, ora dão um testemunho de que acreditam em Deus, ora, passado um tempo depois, já dizem acreditar em Buda, depois em Maomé, e mais tarde na energia [cósmica]... Não ficam presas a nada.
Cuidado para não seguir somente as vaidades. Somos vaidosos, mas não podemos ser levados pela vaidade. Não invente um personagem, seja aquilo que você é. Seja autêntico, assim você provoca autenticidade nas pessoas a seu redor. Procure ser aquilo que Deus o fez. Se você está correndo atrás de porcaria cuidado para não acabar deixando de ser aquilo que Deus fez de você.
Deus acontece plenamente no nosso coração quando nós nos permitimos ser aquilo que somos. A nossa divindade só acontece na participação.
Não seja aquilo que dizem que você é. Parece estranho, mas não podemos dar aquilo que não temos. Se você não descobrir que você é sagrado, você não vai perceber a sacralidade que o outro é!
Quem não se ama não sabe amar ninguém. É uma pessoa ausente de si mesma. Os amores estragados que passaram minaram aquilo que ela era. Há pessoas que vemos que não têm amor-próprio; mas nós não temos o direito de perder esse amor.
Tome posse do que você é para depois dar-se ao outro.
Padre Fábio de Melo
Padre Fábio de Melo é professor no curso de teologia, cantor, compositor, escritor e apresentador do programa "Direção espiritual" na TV Canção Nova.
09/01/2012 - 08h30