Hilton Libos
As modernas gerações têm uma dívida maior do que poderiam imaginar para com os monges medievais. Durante boa parte do milênio passado, eles transformaram os mosteiros da Europa – seu espaço de encontro com Deus, por meio da oração e do canto – em movimentados centros de pesquisa filosófica e científica. Além de conhecimento puro, a criatividade dos mosteiros também originou, ao longo de outras épocas da História, uma série de descobertas e produtos que foram incorporados aos usos e costumes da sociedade, estando presentes ainda hoje.
Do prosaico dedal para pregar botões aos óculos; das cópias à mão de textos aos sistemas de impressão e criação do livro propriamente dito; das descobertas das leis da genética aos cuidados de assepsia em ambientes hospitalares; do champanhe, inventado quase casualmente pelo monge dom Perignon (1639-1715); e do famoso licor bénédictine – produzido pela primeira vez em 1510, a partir de 27 tipos de ervas aromáticas e cascas de árvores – ao chocolate. Estes são apenas alguns exemplos mais comuns legados pela criatividade, muitas vezes anônima, dos inventores, cientistas e pesquisadores que viviam nos mosteiros.
O monge beneditino Carlos Eduardo Uchoa Fagundes, diretor-geral da Faculdade de Filosofia São Bento e artista plástico, acredita ser natural que as contribuições dos mosteiros para a sociedade – não só em termos de inovação tecnológica, mas também em outras esferas do conhecimento – tivessem origem entre os membros da Igreja. “No decorrer dos últimos dois milênios, a Igreja foi a única instituição a se manter estruturada, inserida e atuante em todo o processo de formação da cultura ocidental” – explica irmão Carlos Eduardo, lembrando que, no século 3o, quando teve início o estilo de vida religiosa monástica no Ocidente, os monges passaram a se retirar da mundani-dade da vida social, mas não do mundo. “Mesmo na clausura dos mosteiros, eles não voltavam as costas para a realidade. Pelo contrário, sempre mantiveram uma forte ligação com o mundo exterior, trabalhando com empenho para o seu aperfeiçoamento espiritual e social” – afirma o beneditino.
Jorro de luz – A disseminação do conhecimento concentrado nos mosteiros, segundo irmão Carlos Eduardo, foi uma das missões mais importantes cumpridas por estes locais, até mesmo com o apoio do imperador Carlos Magno (742-814), que autorizou o funcionamento de redes de ensino em suas instalações. “Em seus scriptoriuns conventuais, os monges copistas já trabalhavam para a preservação da cultura e do Direito Romano, formatando o livro nos padrões básicos que apresenta até os dias de hoje” – cita o religioso.
No século 11, após a Primeira cruzada, a Europa cristã travou um contato profundo com a cultura árabe-muçulmana e, mais do que escolas, os mosteiros se transformaram em pólos para amplos questionamentos filosóficos e científicos que se confrontavam com a Teologia. A convergência dos principais elementos da cultura árabe e da filosofia clássica grega tornou necessária a criação de outro espaço para a discussão dos temas colocados em evidência pelos “infiéis” muçulmanos. Foi assim que surgiram as duas primeiras universidades européias: a de Bolonha, na Itália, em 1088, e, a de Paris, na França, em 1170.
Os conhecimentos de aritmética e geometria, apreendidos dos muçulmanos, prepararam as bases para o lançamento da matemática como ciência autônoma, o que ocorreu apenas no fim do século 19. As discussões sobre física ótica, o fenômeno natural do movimento e as relações entre tempo e espaço eram algumas questões que instigavam os filósofos da época e foram transformadas em objeto de estudo pelos monges. Na Inglaterra do século 12, por exemplo, o monge-cientista Thomas Bradwardine (1295-1349) desempenhou um papel decisivo para o surgimento da teoria mecânica ao estabelecer a relação entre força e resistência à velocidade na produção do movimento.
Como se vê, durante toda a Idade Média, os monges, no recolhimento espiritual dos mosteiros, projetaram um verdadeiro jorro de luz naquela que costuma ser considerada, injustamente, uma era das trevas. Graças a este trabalho metódico e disciplinado, foram desenvolvidas várias idéias, concepções e inovações que abriram caminho para importantes descobertas científicas nas mais diversas áreas do conhecimento.
paulinas.org.br