A COMPAIXÃO DE DEUS EM JESUS CRISTO
1ª leitura: (Jr 23,1-6) Os maus pastores e o verdadeiro pastor de Israel – Os reis de Judá foram maus pastores para o rebanho; por isso, serão castigados (23,1-2). Mas Deus reunirá novamente seu rebanho, de todos os lugares, e lhe dará um bom pastor (23,3-4), um descendente de Davi, que poderá chamar-se “Javé nossa justiça” (Iahweh Sidqênu, alusão irônica ao nome do rei-fantoche Sedeqiáhu, Sedecias, “Justiça de Javé”). Ele realizará o Reino de Javé. * 23,1-4 cf. Jr 33,12; Ez 34,1-31; Is 3,14-15 * 23,5-6 cf. Jr 33,14-17; Lc 15,3-7; Jo 10,1-8.
2ª leitura: (Ef 2,13-18) Unidade de gentios e judeus em Cristo – Do ponto de vista do judaísmo, os pagãos estavam longe de Deus. Cristo, porém, os trouxe para perto. Por eles Deus chamou a todos. Não há mais discriminação. De judeus e gentios, fez uma nova realidade: o “homem novo”. * 2,13 cf. Ef 2,11-12; 1,10; Cl 1,20 * 2,14-16 cf. Is 9,5-6; Gl 3,28; Cl 2,14; 2Cor 5,17; Ef 4,4; Cl 1,21-22 * 2,17 cf. Is 57,19.
Evangelho: (Mc 6,30-34) Compaixão e ternura do Pastor messiânico – Os Doze voltam de sua missão-estágio (cf. dom. passado), entusiasmados com o que puderam fazer. Mas Jesus lhes ensina o valor da solidão e da interiorização. De barco, procuram um lugar deserto (6,31-32). Mas a vontade do Pai é imprevisível: quando chegam ao lugar desejado, encontram a multidão que, por terra, tomara a dianteira. Aí, Jesus obediente à sua missão, deixa-se mover pela “compaixão”, característica primeira de Deus (cf. Ex 34,6 etc.), pois reconhece na multidão as ovelhas que precisam do pastor. Realiza-se, veladamente, mais uma figura escatológica (como o “esposo” em 2,19): a reunião do rebanho escatológico, vindo “de todas as cidades” (universalismo; cf. Jr 23,3; Ez 34,13). * 6,32-34 cf. Mt 14,13-14; Lc 9,10-11; Jo 6,1-2 * 6,34 cf. Mt 9,36; Nm 27,17; Jr 23,2; Ez 34,5.
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O evangelho esboça o quadro para a ação seguinte de Jesus, a multiplicação dos pães. Os discípulos voltam de seu “estágio pastoral”, contam tudo o que fizeram. E Jesus, dando um exemplo para a Igreja futura, os convida a descansar na sua presença, num lugar deserto (o deserto, em Mc e em muitas páginas da Bíblia, é o lugar onde Deus fala a seu povo). Mas aí acontece o inesperado: chegando ao lugar deserto, encontram uma multidão de gente, que acorreu por terra ao lugar aonde se dirigira o barco. Decepção no plano humano, mas hora da graça no plano de Deus. E então, Jesus tem compaixão da multidão, “porque eram como ovelhas sem pastor”. Esta breve frase de Mc 6,34 evoca um mundo: toda a tradição bíblica acostumada a falar em Deus como o “Pastor de Israel” (cf. Is 40,11), título dado também a Moisés (Is 63,11), aos reis e, sobretudo, ao rei messiânico, anunciado por Jr, Ez e Zc. Para quem sabe ler, significa que ele é o Pastor escatológico que chegou. Jesus, movido de compaixão (qualidade primordial de Deus: cf. Ex 34,5-6) assume ser o pastor dessas ovelhas que não têm pastor, vindas de todos os lados para encontrá-lo (imagens de Ez 34 e 36). Uma situação humana inesperada torna-se realização da reunião escatológica do rebanho de Deus. Pela incansável “com-paixão” do Cristo, prepara-se a mesa para o banquete escatológico.
O simbolismo do pastor, no Antigo Testamento, tem várias facetas. Nos textos clássicos de Jr, Ez e Zc encontramos a oposição entre o bom pastor (Deus ou seu enviado) e os maus pastores, que são os chefes de Israel e Judá. Que o significado do bom Pastor oscila entre Deus e seu enviado não é um problema para o leitor oriental: ele sabe que o pastor não é necessariamente o dono do rebanho; pode ser seu homem de confiança. Em Sl 23[22], Jr 23,1-3, Ez 34,1-22, o pastor é Deus mesmo; em Jr 23,4-6 e Ez 34,23-24 e, sobretudo, em Zc 9,14, trata-se de seu(s) enviado(s). O Novo Testamento vê a realização desta figura em Jesus Cristo (Mc 6,34; 14,27 cf. 16,7 e par; Jo 10, 1Pd 2,25). A imagem do pastor nos lembra ainda a ternura descrita em Is 40,11.
No presente contexto predomina o fato de reunir o rebanho: a reunião escatológica das tribos dispersas. Falar do Bom Pastor significa falar de unidade (cf. Jo 10). Neste sentido, a 2ª leitura de hoje vem sublinhar a mensagem da 1ª leitura e do evangelho. Enquanto em outros textos, por exemplo, Rm 3,21-25, a ideia da reconciliação pelo sangue do Cristo – simbolismo cultual tomado do Antigo Testamento – se refere à reconciliação do homem com Deus, Ef 2 a aplica à superação da divisão da humanidade, divisão entre “o povo” (Israel) e “as nações” (pagãs). Agora, em Cristo, os que estavam longe (os helenistas, a quem a carta é dirigida) aproximaram-se. Isso foi realizado pelo sangue de Cristo, isto é, por sua morte, que marcou o fim do sistema de justificação baseado na Lei judaica, até então parede divisória da humanidade (alusão à parede que confinava, no templo de Jerusalém, o “átrio dos gentios”). Ef retoma aqui um tema caro a Paulo: se Jesus foi condenado pela Lei, mas ressuscitou, quem foi condenado é a Lei (cf. Gl 3,13-14). A Lei não mais separa os que pertencem a Cristo, sejam judeus, sejam gentios. Assim Jesus anunciou a “paz” (o dom messiânico) aos de longe (os pagãos) e aos de perto (os judeus), linguagem que evoca a reunião escatológica presente também no simbolismo do pastor (cf. 1ª leitura e evangelho).
Do conjunto destas leituras depreendemos uma ideia para ser meditada: a reconciliação do homem com Deus o une com seus irmãos. Na prática, porém, o homem, muitas vezes, usa Deus para justificar discriminação, ódio, perseguição. De modo aberto, quando uma convicção religiosa se torna ideologia de combate. De modo velado, no coração do indivíduo, quando alguém se acha superior por razões religiosas. Jesus fez “dos dois um só povo”, “um só corpo”, o “homem novo”, “em si mesmo” (“linguagem corporativa”: a descendência está no patriarca, a comunidade no seu fundador). Este único corpo é, ao mesmo tempo, o do Cristo e o da comunidade constituída por ele. Ele veio a nós, dando-nos o poder de nos aproximar do Pai: movimento recíproco, cuja iniciativa está do lado da graça de Deus. Uma religião agressiva não é de Jesus Cristo. Este morreu, não para separar, mas para aproximar. Aquele que morreu por todos, não pode servir de pretexto para qualquer discriminação.
A COMPAIXÃO DE DEUS
No domingo passado vimos a missão dos doze apóstolos. Hoje assistimos à volta dos doze. Cumpriram tão bem seu primeiro “estágio pastoral” que Jesus os convida para um piquenique ou um dia de retiro na margem do lago de Genesaré. Entram no barco, navegam uns quilômetros e, quando chegam no lugar desejado, encontram uma multidão de pessoas que os viram partir e correram pela margem até lá. Decepção? Não. “Jesus encheu-se de compaixão por eles, porque eram como ovelhas sem pastor” (evangelho). Jesus se torna pastor para essas ovelhas. E o que faz? “Pôs-se a ensinar muitas coisas”.
No Antigo Testamento, pastor é aquele que orienta e conduz. Vai à frente das ovelhas para conduzi-las a pastar. Assim eram chamados pastores os chefes do povo de Israel: os reis, Moisés, o Messias, e sobretudo: Deus mesmo (Sl 23[22]; 95[94],7 etc.). E é assim que na 1ª leitura de hoje Deus mesmo se apresenta, à diferença dos maus pastores (Jr 23,1-6). Os maus pastores dispersam o rebanho, o bom pastor reconduz os dispersos.
O projeto de reconduzir o povo, recebe sua plena realização em Jesus de Nazaré. Ele procura um lugar tranquilo para os discípulos, mas topa com uma multidão carente de pastor. Então tem compaixão deles e começa a ensinar-lhes as coisas do Reino. Temos aí a origem da “pastoral”. A pastoral é colocar em prática a “compaixão” pelo povo. Não a compaixão de chamar alguém de coitado, sem fazer nada. Mas a “paixão” que nos faz sentir “com” o povo.
Acolher o povo, ensinar-lhes as coisas do Reino, tudo o que Jesus faz para o povo com vista ao Reino é “pastoral” em proveito de Deus, é cuidar de seu rebanho. Por isso, Jesus dará até a vida (Jo 18,11-18). O que faz algo ser pastoral não é tal ou tal atividade determinada, mas o intuito com que ela é assumida: transformar um povo sem rumo em povo conduzido por Deus.
Por isso, hoje, o importante não é multiplicar atividades chamando-as de pastoral, mas cuidar de que os que as realizam tenham alma de pastor, atitude de pastor: acolhida, liderança e amor até doar a própria vida.
Pastoral é conduzir o povo pelo caminho de Deus. É inspirada não pelo desejo de poder, mas pelo espírito de serviço. Jesus não procurou arrebanhar o povo para si. Inclusive, vendo o entusiasmo equivocado, se retirou (Jo 6,14-15). Ele procura levar o rebanho ao Pai, nada mais. Ser pastor não é autoafirmação, mas o dom de orientar carinhosamente o povo eclesial para Deus.
(O Roteiro Homilético é elaborado pelo Pe. Johan Konings SJ – Teólogo, doutor em exegese bíblica, Professor da FAJE. Autor do livro "Liturgia Dominical", Vozes, Petrópolis, 2003. Entre outras obras, coordenou a tradução da "Bíblia Ecumênica" – TEB e a tradução da "Bíblia Sagrada" – CNBB. Konings é Colunista do Dom Total.)
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