1. É importante viver e viver densamente. Acordar de manhã, sentir as batidas do coração e atravessar o tempo da vida na alegria de acolher o borbulhar da existência: homem, mulher, trabalho, empenhos, filhos, projetos para viver em plenitude, sondando o mistério da existência e vislumbrando lá em seu interior Alguém que nos espreita e nos convida a viver em plenitude. Ser do Senhor. Mas também levantar os caídos, maravilhar-se com um ipê roxo todo florido e chorar a morte do rapaz que foi eliminado pelo tráfico. Vida, sempre de novo a vida. Nada de mediocridade, nada de “empurrar” a história para frente, nada de formalismos frios, nem de uma religião longe da vida e alienante, religião de sacristia, asséptica, tranquila, inofensiva. Felizes aqueles e aquelas que, na aventura da vida, são chamados a seguir Cristo Jesus. “Vem e segue-me!” Aqueles que carregam o frasco do perfume do Evangelho. São os bem-aventurados discípulos do Ressuscitado. Tentam ser luz do mundo e sal da terra e assim fazem sua parte, dão sua contribuição para que a terra seja mais parecida com o mundo que começou a existir com a paixão, morte e ressurreição do Senhor.
2. Sentir-se homem, sentir-se mulher, crescer, quebrar a solidão. Nascer no seio de uma família, sentir-se acolhido, amado. Não é bom que o homem viva só. E essa peregrinação do masculino para o feminino ocupa importante lugar na aventura da vida. Companheiros, amigos, confidentes, parceiros de uma história. Um homem e uma mulher, dois que constituem uma comunidade de vida e de amor, respeitosa, amorosa. A proximidade dos corações, o encontro dos corpos. Tudo isso vivido sob o olhar do Senhor. Marido e mulher que refazem em suas vidas a aliança entre o Esposo no alto da cruz e sua Igreja. No casal cristão está a origem de uma família cristã. Ali, no tecido do cotidiano, se refaz uma evangelização que se tornou impossível no mundo da indiferença. A evangelização da vida e na vida… Os pais transmitem, mesmo com toda dificuldade exterior, um estilo de viver aos filhos, um modo de habitar o mundo, uma maneira de atravessarem a existência sem que fiquem arranhões demais, para que os filhos não sejam vazios, que possam escutar o ecoar do chamado de Deus no seu coração de jovens. Os pais são os primeiros evangelizadores dos filhos. Não é esta a missão dos leigos franciscanos em suas famílias?
3. Aí estão, pelo mundo afora, esses milhares de franciscanos seculares. Seu habitat é o mundo, a cidade, o campo. Não vivem em primeiro lugar nos espaços reservados para o sagrado e para celebração do culto. São do mundo, vivem no mundo, transformam o mundo, evangelizam o mundo, sofrem no mundo, se alegram no mundo. Mundo aqui não quer dizer a ordem de coisas que vai contra a vontade de Deus, esse mundo do inimigo. Os cristãos são do mundo, sem serem do mundo. Jesus dizia que os seus não eram desse mundo mau. O mundo em que vivem os leigos é essa realidade boa que saiu das mãos de Deus: sol e lua, água e fogo, vida de todos os dias, cotidianidade, homem e mulher. Sentem os franciscanos seculares que precisam “dominar a face da terra”. Alguns campos de atividade lhes são próprios: família, trabalho e organização da pólis ( política). Sentem eles que seu lugar se situa nas praças e no trabalho, nas fábricas e campos, nos jornais e nas emissoras radiofônicas. Com Francisco contemplam esse mundo que saiu das mãos de Deus e que era “muito bom”. São apaixonados e fascinados pelo Evangelho, a ponto de fazerem uma profissão de segui-Lo por toda a vida. Estão por ai: são pais e mães com filhos pequenos, são jovens e adultos, vivem o matrimônio, educam os filhos, carregam peso do trabalho, enfeitam a terra, cantam o sol que chega e se encantam com a água mansa que desce pedras abaixo. São balconistas, frentistas, médicos, escritores, marceneiros, fisioterapeutas, advogados, mecânicos. Seu lugar primeiro e preferencial são os caminhos pisados pelos homens, a cozinha da casa, o hospital para onde levam seus familiares, a tribuna de uma câmara de vereadores. São biscateiros, empregadas domésticas e professores. São leigos cristãos que se vestem com as cores de Francisco e de Clara, no meio do mundo. Vão pelo mundo sem perder o espírito da devoção e da santa oração.
4. Frei Jorge Peixoto, OFMConv, argentino, no VIII Congresso Latino-Americano OFS/JUFRA (maio de 2012) dizia: “Queremos recordar o fato de que Francisco descobre Deus no mundo, no abraço dado a um pobre excluído, desprezado e miserável, no encontro com a miséria social que se manifesta na pessoa do leproso. Francisco rompe com um certo tipo de mundo: o mundo marcado pela exclusão e pela crueldade, que produz sempre novos leprosos. Entra neste mundo a partir de um outro lugar, a partir de um mundo marcado pela misericórdia e ternura de Deus que se manifestou na pobreza e na humildade de Jesus, que resgata o homem e todas as criaturas, colocando-as no centro de seu amor”. Sim, no dizer de João, Deus amou tanto o mundo que lhe deu seu Filho único. Continua Frei Jorge Peixoto: “Essa vocação secular da espiritualidade franciscana nem sempre se manteve ao longo da história. Bem lá no começo apareceram correntes que conseguiram seguir outros modelos mais tradicionais. A separação do mundo e das pessoas do mundo foi se acentuando, criando uma distância da vida corrente de dada dia. A clericalização da vida dos frades e de muitos leigos nos foi distanciando do mundo secular. Alguns irmãos seculares se reuniam em associações piedosas, sem maior influência sobre a sociedade”.
5. Há muito se fala que vivemos a “hora dos leigos”. A OFS é uma escola de formação de um laicato maduro. O texto normativo da vida dos leigos é a Regra com suas orientações, suas insistências e sua força: leigos que não sejam superficiais na oração, que não se contentam com uma vida salpicada aqui e ali de um pouco de água benta. Gente que escuta a Palavra, se se forja pela Palavra, que passa do Evangelho para a vida e da vida para o Evangelho, pessoas que vivem da Eucaristia, dessa Eucaristia quase cotidiana que faz deles não apenas leigos ativistas que correm de um lado para o outro, mas homens e mulheres profundos, gente que não se deixa encantar pelo consumismo e pelo fascínio das coisas que brilham e passam. Insistimos: não se trata de convidar os leigos a correrem de um lado para o outro no ativismo que a nada leva.
6. Tomo a liberdade de transcrever umas linhas magistrais de Michel Hubaut que exprimem bem a ação do franciscano no mundo: O franciscano “é um cristão que tem necessidade do apoio de uma fraternidade de irmãos e irmãs para enraizar seus compromissos e amadurecer os compromissos mais diversos na luta contra toda forma de injustiça, de violência, de racismo, de desrespeito pela vida, pelas pessoas e pela criação e para concretizar a paixão pela paz. É um cristão cuja alegria manifesta que o Evangelho é caminho de humanização…”. Típico do franciscano secular é viver em fraternidades e a partir do mistério dakoinonia ir pelo mundo.
7. Leigos franciscanos que vivem a experiência da fraternidade. Na mesma linha vai Frei Jorge Peixoto: “Uma fraternidade tem coração e não somente projetos e tarefas para realizar. A porta de ingresso na fraternidade não pode ser nem a razão nem o interesse, porque estaríamos realizando mais uma empresa do que uma fraternidade. O sentimento, a capacidade de sentir-se tocado pelo outro, de comprometer-se com ele sem possuí-lo nem humilhá-lo são conteúdos normativos de uma relação fraterna. Admitir que a prioridade da bondade e do cuidado que se funda na bondade original de Deus deve organizar o pensamento e a expressão humana não significa deixar de trabalhar e de atuar no mundo… Ao contrário, impulsiona a um modo de ser novo que renuncia a todo tipo de poder de dominação que reduz os outros em objetos sem história e sem sentimentos. Admitir a prioridade do cuidado e da bondade faz com que o encontro humano tenha valor e que valha a pena conviver. O cuidado se expressa na categoria do irmão guardião, como aquele que guarda e serve os irmãos, o que se desvela desinteressadamente, que se faz menor e disponível, e ao mesmo tempo designa uma atitude fundamental ou modo de ser que possibilita uma existência nova”.
8. A formação no seio das Fraternidades se encarregará de levar os seus a uma profunda experiência cristã e franciscana: assim eles poderão mostrar um estilo de vida cristã no comer, no comprar, no vender, do lazer, no labor, na dor… A fonte é sempre essa experiência crística. Os leigos deverão poder dizer: “Vimos o Senhor!” E franciscanos dirão: “Convivemos com um Senhor que nos ama e se nos manifestou no rosto do servo Jesus, daquele que não tinha uma pedra para reclinar a cabeça, daquele nos encantou com sua pobreza e dependência de tal forma que nós nos apaixonamos por ele e por seu estilo de vida despojado. Assim também nosso viver é despojado”. Assim, a vida leiga é perpassada da presença do Senhor. Um fiel leigo que vive cada passo de sua Regra se dispõe a ser um leigo pregador pelo seu estilo de viver, pelo seu estilo de usar a água, de conviver, de partilhar, de se vestir com beleza, mas com simplicidade. Será que os franciscanos seculares deixam transparecer tudo isto?
9. Em Discurso numa assembleia pastoral da Itália, o Cardeal Diogini Tettamanzi afirmou: “Urgente acelerar a hora dos leigos, retomando o esforço eclesial e secular sem o qual o fermento do Evangelho não pode atingir os contornos e meandros da vida cotidiana, nem penetrar os ambientes fortemente marcados pelo processo se secularização (…). Necessário se faz criar nas comunidades cristãs espaços em que os leigos possam tomar a palavra, comunicar suas experiências de vida, exprimir seus desejos, suas descobertas, seu pensamento a respeito do que vem a ser cristão no mundo. Somente desta maneira poderemos criar uma cultura que seja atenta às dimensões cotidianas do viver. Por isso, urgentíssima uma formação dos leigos que leve em consideração seu crescimento espiritual e intelectual, pastoral e social, fruto de um novo estágio formativo para os leigos e com os leigos, formação que leve à maturação de uma plena consciência eclesial e os habilite a um eficaz testemunho no mundo. Estes novos programas requererão formas de espiritualidade típicas da vida laical, para que encontro com o Evangelho gere modelos capazes de serem propostos por sua beleza”. As Fraternidades franciscanas seculares, custe o que custar, terão que ser escola de leigos capazes de escreverem a historia de suas vidas no meio do mundo com “seu estilo de habitar o mundo”. O Cardeal italiano diz alguma coisa muito simples e fundamental: escolas de formação de leigos que os habilite a dar um testemunho no meio do mundo. Não é essa a missão da formação na Ordem de leigos dos franciscanos? Esta é nossa prioridade, e não em primeiro lugar fornecer agentes para funções litúrgicas e pastorais. Os franciscanos leigos bem formados serão uma presença significativa na Igreja local.
10. Tenho receio de não ter respondido ao tema que quis abordar pensando no Capítulo Nacional da OFS do próximo mês de agosto. Que sugestões práticas vêm à mente quando pensamos no tema do laicato franciscano? Que todos aceitem estas considerações finais:
• A história da Ordem Franciscana Secular (Ordem Terceira) teve páginas brilhantes escritas por leigos. Há esses leigos cujos nomes não são mencionados, terceiros anônimos. e que temos a certeza de terem sido cristãos leigos e de muito valor. Alguns são conhecidos internacionalmente: Frederico Ozanan, Raimundo Lullo, Zilda Arns, Giorgio La Pira, Léon Harmell. Recentemente encontrei mais uma vez um nobre frade menor, Mario Cayota, franciscano uruguaio que foi mesmo embaixador de seu país na Santa Sé. Não quero apenas me referir a nomes conhecidos. Há muitos outros leigos admiráveis que viveram escondidos nas Fraternidades. Cada Fraternidade deveria fazer a crônica de seus santos leigos.
• Nossas Fraternidades serão espaços de reflexão séria sobre os grandes problemas que os leigos vivem e sobre os campos de ação. A formação se encarregará de ajudar os irmãos a habitarem franciscanamente a Igreja e o mundo. Quais são esses problemas? Entre outros: indiferença para com a fé, vivência de um cristianismo sentimental, confusões de gênero, sociedade hedonista, meios de comunicação e mídia, deslocamento geográfico das pessoas, questionamento de uma pastoral meramente conservadora sem a chama evangelizadora.
• Constato que, nos últimos tempos, Capítulos e Congressos dos seculares insistem na questão da família. Uma das prioridades da Ordem é precisamente o tema da família. Pensamos em primeiro lugar que homens e mulheres, casais franciscanos, reavivem chama de seu amor conjugal, acendendo as graças do sacramento do matrimônio, que não levem uma vida conjugal medíocre, que vivam uma espiritualidade conjugal e familiar franciscana. Nossas famílias são o primeiro espaço da nova evangelização e constituem o primeiro momento do discernimento vocacional. Elas podem ser um lugar de gestação de uma nova cultura cristã, do nascimento de um olhar cristão sobre a caótica realidade que vivemos. Este é um papel importantíssimo da família e, nosso caso da família dos franciscanos seculares.
• Os livros de formação da OFS deverão ser fortemente marcados pelo método do ver, julgar, agir. Não se trata apenas de encher a cabeça de ideias, mas de olhar critica e cristãmente a realidade.
• No momento atual será de fundamental importante, sobretudo no caso dos formandos, que sejam levados a viver uma intensa espiritualidade franciscana, base de seu amanhã na Ordem.
• Na medida do possível, e em estreita união com a pastoral local, os franciscanos seculares poderão dar sua contribuição específica na evangelização das famílias.
• Aos poucos precisamos ver serem multiplicadas fraternidades mais simples, mais flexíveis, mais verdadeiras.
Terminamos nossas reflexões, mais uma vez, dando a palavra a Michel Hubaut: “Irmãos e irmãs de São Francisco, temos um papel original a desempenhar nesse futuro que devemos construir com todos os homens de boa vontade acentuando a prioridade das pessoas no seio da Fraternidade universal; manifestando a novidade do Evangelho, fonte de felicidade, encarnando, no cotidiano dos relacionamentos o amor salvador de Cristo. Esforçando-nos para sermos testemunhas da liberdade interior no Espirito; recusando a ditatura do dinheiro e a pauperização de dois terços do planeta. Construir um futuro maravilhando-nos da beleza da criação e promovendo um desenvolvimento humano durável; apaixonado pela paz e pelo diálogo entre as religiões; fiéis a uma Igreja muitas vezes pecadora e por vezes luminosa”.
O laicato escuta as batidas do coração do Senhor no meio do mundo.
Frei Almir Ribeiro Guimarães
franciscanos.org.br