Cardeal Orani João Tempesta
Arcebispo do Rio de Janeiro (RJ)
É neste tempo favorável – tempo da Quaresma – que a Igreja, na Liturgia, nas várias celebrações e reuniões, através dos sinais e da pregação vai nos convidando, começando pela Quarta-Feira de Cinzas, a fazermos uma caminhada de conversão rumo à Pascoa. Temos várias ocasiões, acontecimentos e oportunidades, durante a nossa vida, para trilharmos o caminho da conversão, da mudança de mentalidade, da mudança de coração.
Tanto pode acontecer em um retiro espiritual, num encontro, num momento de oração silenciosa, em um diálogo, numa leitura da palavra de Deus, em algum momento forte em nossa vida! Deus atua de diversas formas em nossa história, mas a Igreja reserva os 40 dias da Quaresma para ser uma oportunidade de renovação. E todos nós sabemos do simbolismo bíblico do número 40 como tempo de combate, de encontro com Deus, de caminhada de libertação.
É verdade que todos os anos nós temos a Quaresma, mas nunca é a mesma, nunca da mesma forma, não só porque mudam os temas, como o da Campanha da Fraternidade, mas cada dia é um momento novo, único, pois é um acontecimento de Deus em nossa vida e que nos interpela em uma nova situação.
Todos nós temos muito a fazer! Durante o ano, vamos acumulando situações as mais diversas, situações de pecado explícito ou implícito, situações muitas vezes que deixam nosso coração amargurado, machucado, ferido, além de ofender as pessoas ou criar posturas de injustiça e corrupção. Situações que levamos outras pessoas ao nosso redor a sofrerem devido ao nosso comportamento, à nossa maneira de ser, posições que muitas vezes acontecem de levar a situações de pecado na sociedade, como é o que a Campanha da Fraternidade denuncia. Essas várias situações que vão ocorrendo são consequências dos pecados pessoais, que têm consequências sociais. A Campanha da Fraternidade nos ajuda a cada ano com um tema que isso demonstra.
É neste tempo da Quaresma que somos convidados, como povo de Deus, a refazer o caminho do Êxodo, a refazer a caminhada de libertação, de conversão, de renovação interior. E, nesse sentido, após termos vivido no ano passado a Jornada Mundial da Juventude, temos dado passos em várias celebrações e caminhadas em nossa Arquidiocese e em nossa vida pessoal, enquanto preparamo-nos também para celebrar os 60 anos do Congresso Eucarístico Internacional, no próximo ano, ao mesmo tempo em que comemoraremos os 450 anos da cidade.
Portanto, a Quaresma deve ser para nós uma oportunidade de renovação profunda da nossa vida. Se de um lado vimos Deus agir no meio de nós, como realmente vimos, de outro lado devemos nos colocar disponíveis para que Deus continue atuando e agindo no meio de nós também nos tempos atuais. O Evangelho nos recomenda a oração, a esmola e o jejum, e nos convida a entrar num tempo de ascese, de conversão, para que realmente a mística, o estar com o Senhor aconteça.
É tempo de intensificar a vida de oração diante de Deus, a quem nós escutamos, com quem nós falamos, partindo do interior do nosso coração, mesmo que rezemos em comunidade. É tempo de, neste mundo capitalista como o nosso, partilhar dinheiro com os outros, na gratuidade de quem não pode retribuir. É uma oportunidade de desapegarmos daquilo que colocamos como nossos “deuses”, que são os bens materiais, assim como, num mundo em que tanta gente morre de fome, nós temos, nesta caminhada de jejum e abstinência, uma oportunidade não só de estarmos juntos com tantas pessoas, mas partilharmos também com os outros o fruto da penitência que fazemos e depois distribuímos para as situações sociais de necessitados. Nesse sentido, a Coleta da Solidariedade, como ação concreta da Campanha da Fraternidade e também consequência das penitências quaresmais, nos coloca que toda essa vida de oração, penitência, jejum, deve fazer-nos partilhar os bens, o dinheiro com os irmãos mais necessitados. E nós faremos isso depositando na coleta do Domingo de Ramos o fruto das nossas penitências.
O Papa Francisco, na sua mensagem para a Quaresma desse ano, nos recorda que essa partilha não pode ser apenas aquilo que sobra, mas sim o que dói em nosso bolso. É esse o tempo favorável que nós iniciamos dentro de um chamado a voltar nosso coração para o Senhor, e é muito importante e necessário para que, aproveitando esses 40 dias, intensifiquemos a busca da coerência cristã e vivamos a caminhada feliz para a Páscoa, quando, na vigília, renovaremos as promessas batismais.
O mundo continua seu ritmo como se a Quaresma não existisse. Esse mundo plural, embora em uma sociedade dita cristã, já perdeu, há muito, o viver a Quaresma como tempo de silêncio, de oração e de conversão. Mas isso não deve acontecer conosco! Embora ao nosso redor o pluralismo da sociedade siga o seu ritmo alucinante, para nós católicos, desde que testemunhemos a necessidade de conversão quando recebemos cinzas sobre as nossas cabeças, agora deve ser um tempo especial: de voltar ainda mais o coração para o Senhor e ter consciência dos pecados que estão em nossas vidas. Isso, começando pela nossa família, o relacionamento conjugal, a dificuldade de convivência, de não aceitação uns dos outros, da violência, das omissões. Também o trabalho e a convivência na própria paróquia, nas próprias comunidades, a dificuldade de viver a gratuidade, da partilha uns com os outros, quantas inimizades e rancores em nossos relacionamentos que atrapalham a evangelização! Muitas vezes não deixam a missão evangelizadora da Igreja caminhar, colocando obstáculos uns para com os outros, dentro da ciumeira ou inveja. Muitas vezes, uma maledicência e fofocas que existem em nossas comunidades, levam a depreciar as pessoas e a não conviver como irmãos e irmãs, não sabendo perdoar nem se aceitar mutuamente.
Vemos também situações de injustiça, de violência! Violência não acontece só na Ucrânia ou só na Venezuela, em países de perto ou de longe, mas bem perto de nós. Quantas mães choram seus filhos desaparecidos sem saber para onde foram e, ainda hoje, nada se faz! Quantas pessoas perdem o direito do ir e vir e têm medo da violência! Quantos passam necessidades, não tendo como caminhar na própria vida. E ainda há as questões do desemprego e da Saúde, que continua com suas filas enormes.
E quantas situações ao nosso redor que vão mostrando realmente que existe uma necessidade de ter uma nova sociedade, um mundo diferente. E, nesse ano, a Igreja no Brasil nos aponta para um dos fatos e chama a nossa atenção para o tráfico humano, colocando à nossa frente uma situação que, devido a interesses econômicos, neste mundo capitalista, as pessoas são usadas e vendidas: traficadas! Quanto se condena e se fala do passado escravocrata e não se vê que hoje isso acontece de diversas formas, seja na questão de trabalho ou de prostituição e outras formas também em que as pessoas perdem sua independência. Vivemos em uma situação de tantas injustiças e problemas, os mais variados, e nós, enquanto Igreja, somos chamados a ser fermento no meio da massa. E pra ser fermento, sal no meio dessa massa, somos chamados a ser alguém que está presente no meio da sociedade, porém com outro coração, em outro tipo de vida e de relacionamento.
A Igreja existe para evangelizar, ela é “ser para”, não vive para si mesma, olhando apenas para dentro dela, mas é convidada a “ser para” a sociedade, um sinal de transformação, um anúncio do amor de Deus, de sua misericórdia a essa sociedade machucada, ferida pelas guerras da vida e da injustiça e violência urbana. E é justamente à grande cidade que nós somos enviados para ser testemunhas de que é possível ter essa mudança de vida, de viver no desapego, de poder partilhar com os que passam necessidade e fome, de viver uma vida de oração e buscar a Deus, voltar o coração para o Senhor nesse tempo favorável. Pela fé concretizada em atos somos chamados a anunciar que um “outro mundo é possível”!
A nossa vida, chamada à conversão tanto pessoal como comunitária, é um serviço que nós prestamos a essa sociedade, a esse mundo. E quando nós não assim vivemos, quando nós não damos testemunho de que a nossa conversão é pra valer, nós não somos o sal que salga. Sal que não salga não serve para nada. E nós somos chamados justamente a ser esse sal no meio da sociedade, a viver esse tempo de conversão. Graças a Deus, temos também muita gente santa, muita gente solidária, fraterna, mas é necessário que todos nós possamos dar passos. Cada um de nós necessita ter consciência de seu pecado, nestes dias de Quaresma, tempo de conversão, começar a bater no peito e dizer como diz o Salmo: Pequei, Senhor, misericórdia, “tem piedade de mim, sê clemente”, por causa do meu pecado quantos males existem ao meu redor, de falta de comunhão uns com os outros, de presença também nessa sociedade.
Eis agora o tempo em que, enquanto Igreja e enquanto comunidade, nós somos chamados a conviver e a viver essa fraternidade na caminhada de conversão, buscando ouvir a voz de Deus, falar com o Senhor, a tomar consciência de que o pecado tem nos deixado, muitas vezes, longe do Senhor e de ser testemunhas, e que, ao mesmo tempo, a conversão deve ajudar, favorecer a mais justiça, a mais fraternidade, solidariedade, anunciando às pessoas Jesus Cristo, nosso Senhor. Perdão, Senhor, porque nós não O anunciamos pela nossa vida, porque nós não demos um grito de anúncio da palavra de Deus e do Evangelho de Jesus Cristo a esse mundo, a essa cidade. Aqui estou, Senhor, para reconhecer que as palmas que levantei no Domingo de Ramos passado, e que secaram durante o ano e foram transformadas em cinzas que foram colocadas sobre nossas cabeças no início deste tempo, são o sinal de que eu não testemunhei neste ano que passou, como deveria, a vida cristã e o seguimento de Jesus Cristo. Por isso nos reconhecemos pecadores e necessitados de caminhar na conversão nesses 40 dias e, assim também, em toda a minha vida. É necessário que nós abramos o coração, vivamos este tempo propício e assim caminhemos não apenas na exterioridade de um gesto ou celebração, mas com o coração contrito e humilhado nos acheguemos com a vida e com a atividade interior de cada um de nós a uma nova vida em Cristo. Que a nossa boca esteja em sintonia com o nosso interior, e nossas atitudes conduzidas por uma vida nova de amor a Deus e ao próximo. Que nós não vivamos enganados conosco mesmo e saibamos que nós precisamos dessa misericórdia, do perdão do Senhor.
Eis o tempo que nos é dado! E nós começamos justamente isso ao iniciar a Quaresma interiormente, dizendo: estou aqui, Senhor, para, como Igreja, caminhar nesse tempo de conversão!
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