Francesco, meio dançarino, meio poeta, meio criança entra na capela de Nossa Senhora dos Anjos. Um sacerdote idoso celebra a Missa e lê o Evangelho da missão: os apóstolos são convidados a irem pelo mundo a fora, a não se instalarem no templo, a irem anunciar a Boa Nova, sem calçado, sem títulos, formulando votos de paz, anunciando a liberdade do Evangelho. Francesco já usa as roupas de ermitão e caminha com um cajado… Agora, ele vê seu caminho, ou seja, ser andarilho, pregador ambulante, ele e seus irmãos, dois a dois. Leves, lépidos sem o peso de estruturas, sem organizações burocráticas. Com seus vinte e poucos anos, Francisco vai se tornar o homem totus evangelicus. O Evangelho passava a tomar conta dele, até o fim, até o morrer nu na terra nua, ali mesmo nesta abençoada capela da Senhora dos Anjos. Ele pode dizer com toda veemência: “É isto que eu quero, isto que busco de todo o meu coração. Agora está claro: eu serei com minha vida e minha história, junto com meus irmãos o anunciador do Evangelho, fascinados pelo Cristo que nos manda pelo mundo à maneira dos apóstolos”.
Eloi Leclerc, de maneira muito feliz, comenta esse encontro de Francisco com o Evangelho: “Certamente, naquela manhã de 1208, Francisco não tinha consciência do alcance de sua descoberta para o futuro da Igreja; quando seu coração se tinha iluminado com a claridade do Evangelho que ouvira. Não pensa nos hereges, nem nas cruzadas que o Papa projeta contra eles. Quer apenas responder pessoalmente ao apelo do Senhor. Realiza algo de imenso alcance ao tomar ao pé da letra o Evangelho que acabara de ouvir. Compromete-se em trilhar um caminho novo que possibilitará o encontro do Evangelho com o novo mundo das comunas (…) Numa cristandade solidamente instalada e caracterizada pelo imobilismo do sistema feudal, tal Evangelho soa estranhamente como apelo à mobilidade, à vida itinerante. Os discípulos são convidados a se porem a caminho e a percorrerem o mundo, à maneira dos mercadores da época. Era preciso ser comerciante ou filho de comerciante para ouvir esse apelo em sua novidade e atualidade. Ao ouvir esse convite, Francisco sente que o seu próprio corpo pede uma resposta. Só tem um desejo: quer partir, apressadamente quer percorrer o mundo, “com passos grandes e paradisíacos”, no dizer de J. Delteil. Numa Igreja que carrega o imenso peso de suas imensas propriedades de terra, que tem calçados de chumbo, Francisco reencontra a leveza e a alegria da caminhada, a exultação da juventude, a impaciência alegre do mensageiro. No mesmo instante, arranca-se de toda instalação territorial, rejeita todo domicilio fixo e todo feudo. Rompe com o sistema político-religioso de seu tempo, o do “senhorio” da Igreja e dos “benefícios”. Redescobre o Evangelho como movimento de Deus para os homens. Reencontra a missão” (E. Leclerc. Francisco de Assis. O Retorno ao Evangelho, p. 51-52).
Ali começaria a aventura franciscana. Os frades abriram as portas da prisão em que haviam colocado o Evangelho. Soltaram o Evangelho. Nada de peso de estruturas. O Evangelho é um convite a desinstalação. Nada de carga, mas leveza. Leveza semelhante à dança. Abrir os braços para acolher a vida e levá-la adiante. Os peregrinos e os viandantes encontram sua vocação na página do Evangelho lida na Porciúncula e veem concretizada na vida dos franciscanos que são pessoas que respeitam as leis da sociedade e as orientações da Igreja mas são diferentes. Rezam como Jesus e Francisco. Aproximam-se as pessoas não com desejo de enquadrá-las em estruturas fixas e esterilizantes. Mesmo quando não se deslocam fisicamente os franciscanos, as clarissas e os membros da Ordem Franciscana Secular são andarilhos em seu interior. Nada está acabado. Há descobertas a serem feitas. O Espírito anda soprando de uma maneira diferente. Esses franciscanos que gostam dos eremitérios, gostam de dar uma de Marta e de Maria, mas estão presentes no meio dos catadores de papel, dos alunos de uma universidade, na pastoral para fazer dele uma ação evangelizadora, respeitando etapas, sempre preparando os caminhos para a chegada do Senhor.
Frei Fernando Uribe, OFM, comentando o encontro de Francisco com o Evangelho frisa o modo do ir pelo mundo, ou seja, sem nada que dificulte o caminhar velozmente e plena liberdade, sem que os cuidado terrenos entorpeçam a completa dedicação à tarefa de anunciadores do Reino. Estas disposições vão aparecer na Regra da Ordem Primeira: espiritualidade da desinstalação, da desapropriação, de pobres que são instrumentos de Deus no mundo. O Senhor havia revelado a Francisco que ele devia viver conforme o Evangelho. Para que mais?